Em tempo de balanço

sem título | 2018 | Nuno Simão Gonçalves (cortesia do fotógrafo)sem título | 2018 | Nuno Simão Gonçalves (cortesia do fotógrafo)

A primeira newsletter do projecto MEMOIRS tem a data de 5 de maio de 2018. Nela, Margarida Calafate Ribeiro escrevia sobre os fantasmas pós-coloniais à solta na Europa e eu próprio ilustrava este tema abordando os conflitos de memória e de pós-memória presentes na controvérsia em torno da mudança de nomes de rua no chamado “Bairro Africano” de Berlim. No meu breve texto, salientava-se que a alteração iminente da toponímia berlinense, com a retirada de nomes ligados ao passado colonial alemão, era o resultado de vários anos de pressão por parte de organizações agrupadas na iniciativa “Berlim Pós-Colonial”, protagonizada em boa medida por cidadãos alemães de ascendência africana. Sublinhava-se, porém, igualmente, a dificuldade em trazer à memória pública alemã a memória do passado colonial, paralela à relutância do Estado alemão em aceitar a responsabilidade, nomeadamente, dos processos genocidas que marcaram esse passado.

Mais de três anos volvidos, as questões referidas mantêm toda a sua virulência e continuam a alimentar ciclicamente um debate público em que aquilo a que vários têm chamado o inconsciente colonial das sociedades europeias continua muito presente, traduzido numa atitude de recusa dos problemas de uma sociedade multicultural inevitavelmente marcada pela herança pesada do passado colonial. Mas, por outro lado, muita coisa mudou também, a começar pelo crescente protagonismo de vozes que até há não muito tempo permaneciam inaudíveis e que colocam cada vez mais a questão dos legados coloniais no centro da atenção pública. São múltiplos os factores envolvidos, a começar pelas amplas vagas de indignação motivadas por manifestações violentas de racismo, incluindo a violência homicida que vitimou Bruno Candé ou George Floyd. Mas também noutros planos como, por exemplo, a gradual alteração das políticas estatais, de que é emblemático o reconhecimento pelo governo alemão do genocídio dos Hereros e Namas na atual Namíbia, ou no plano do debate sobre a restituição de bens de proveniência colonial, é notória uma crescente atitude de mudança. Neste último âmbito, entre outros exemplos que vão surgindo cada vez com maior frequência, a decisão dos museus de Berlim de, após anos de recusa e controvérsia, devolverem à Nigéria os bronzes de Benim guardados nas suas colecções assume um significado especial. É uma situação que não poderá generalizar-se facilmente. Afinal, no caso dos famosos bronzes, a ilegitimidade da proveniência - o esbulho e saque total levados a cabo no decurso da expedição punitiva britânica de 1897 - é amplamente conhecida e documentada. A chamada “investigação de proveniência” é, noutros casos, bem mais difícil e poderá não conduzir a resultados suficientemente conclusivos - muitas vezes, conhece-se o nome de quem doou ou vendeu determinado objeto, a data da entrada nos fundos de determinado museu, mas não se conhece nem é possível apurar em que circunstâncias esse objeto chegou às mãos de quem o trouxe para a Europa. Seja como for, o tabu que longamente pesou sobre a simples ideia de restituição quebrou-se definitivamente e é de esperar que, no futuro, a ideia vá fazendo, imparavelmente, o seu caminho, tanto mais que são os próprios estados a assumirem crescentemente as suas responsabilidades relativamente aos legados de que são portadores.

Estes processos de aceitação de responsabilidades são processos longos, por definição sempre inacabados, seja no plano do Estado, seja da sociedade civil.  Outra coisa não se passou, de resto, no plano da confrontação de instituições públicas e privadas alemãs e austríacas com o passado nazi. Foi preciso esperar até aos anos 80 para que grandes empresas alemãs, confrontadas com exigências de indemnização de vítimas de trabalho forçado, começassem a encomendar projectos de investigação sobre a sua história nos anos do nazismo - o primeiro caso deu-se com a Volkswagen, que entregou ao reputado historiador Hans Mommsen a tarefa de pesquisar em pormenor a conivência da empresa com a política nazi. No caso dos museus e bibliotecas, o processo foi ainda mais tardio. E o debate está longe de terminado, como revela a muito recente polémica em torno da integração da chamada colecção Emil Bührle no acervo da “Kunsthaus” de Zurique - trata-se de uma colecção em parte notoriamente proveniente do esbulho de proprietários catalogados pelo nazismo como judeus. A esta luz, parece, assim, apropriada, também no relativo à confrontação com os legados coloniais, que a consciência da complexidade destes processos vá de par com a recusa de qualquer ponto final apressado que pretenda dar por concluídos processos por natureza sempre em aberto - um ponto final que equivaleria, no fundo, à perpetuação da violência sobre as vítimas.

Particularmente relevante é, assim, a consciência da necessidade de rever procedimentos e lógicas aparentemente impostas pelo senso comum ou pelas práticas correntes. Por exemplo, em vista das dificuldades da investigação de proveniência atrás afloradas, e partindo de uma definição da relação colonial como intrinsecamente violenta, torna-se defensável, no âmbito da pesquisa sobre os acervos dos museus europeus, a inversão do ónus da prova, isto é, a presunção de que, até prova em contrário, qualquer objeto de proveniência colonial deva ser considerado suspeito, competindo aos depositários demonstrar a legitimidade da sua aquisição.

É assim também que o aparato teórico dos estudos de memória tem vindo a ser reconcetualizado em aspetos relevantes. Por exemplo, relativamente à importância decisiva da perspetiva da vítima, mas, concomitantemente, também no respeitante ao próprio conceito de vítima e à necessidade de o reformular, arrancando-o a uma tradição pouco atenta à capacidade de ação e às múltiplas formas de afirmação identitária ao alcance de alguém que recusa a fixação irrevogável num estatuto de simples objeto da violência. Também neste âmbito se aplica a máxima de Karl Kraus de que quanto mais de perto se olha para uma palavra, mais de longe olha ela para nós. Um conceito aparentemente unívoco como o de restituição revela, a esta luz, uma enorme complexidade, exigindo um conhecimento aprofundado dos contextos e dos atores envolvidos e a criação de uma gramática que lhes seja adequada. Finalmente, o conceito de pós-memória — o eixo central do projeto Memoirs —, que cumpre a função imprescindível de introduzir na equação as gerações seguintes, não menos envolvidas, embora de maneiras específicas, na partilha de um legado de violência, surge, na conclusão do projeto, fortemente consolidado por um trabalho empírico que põe em evidência a sua produtividade para uma análise da Europa pós-colonial. 

MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624); MAPS - Pós-Memórias Europeias: uma cartografia pós-colonial é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT - PTDC/LLT-OUT/7036/2020). Os projetos estão sediados no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.  

por António Sousa Ribeiro
A ler | 27 Dezembro 2021 | comunidade, herança, maps, Memoirs, passado colonial, pos-colonialismo, sociedade, sociedade multicultural